quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Agradecimento


agradecimento
s. m.
1. Ato ou efeito de agradecer.
2. Expressão ou facto. que manifesta gratidão.

Mais tarde, após o transplante, a psicóloga do Hospital, a DrªN, falou-me da "necessidade do agradecimento", isto a propósito de uma relação diferente que estaria a estabelecer com a espiritualidade. Essa relação seria assim uma forma de agradecimento a Deus pela "dádiva" de um orgão que me salvara a vida. Não podendo agradecer à pessoa que me "cedeu" o orgão, ao dador de forma benévola, uma pessoa que acabou de perder a sua vida, e perdendo-a me salvou, agradeceria a uma entidade superior, a alguém que tornou tudo isto possível, isto é, alguém que armou a mão do homem com as técnicas adequadas a salvaguardar um coração da morte do seu possuidor, que colocou o corpo num local onde a retirada do coração foi possível, que permitiu o seu transporte e utilização atempada, o que permitiu que vivesse, apesar de tantas vicissitudes, tantas investidas da morte.

Há de facto muito para agradecer, a quem me deu apoio, visitou, me trouxe comida, ânimo e estímulo, e a todos os profissionais que me trataram. Mas ao "agradecer" a Deus estou a agradecer a todos, num acto único, até a mim mesmo por ter tido a coragem e a força que permitiu a sobrevivência.

Assim normal é que me aproxime desse "ser" superior, se tiver fé, ou de alguma entidade, ideia, pessoa, para mostrar esse reconhecimento, vontade de mostrar que valeu a pena o "sacrifício" de um outro ser que perdeu a sua vida, valeu a pena e foi bem aproveitado. Ao agradecer a Deus, ou a outros, estarei a justificar perante mim mesmo a atrocidade que ceifou a vida de outra pessoa desconhecida, a reparar, se é possível, esse dano, e assumir a melhor guarda para o orgão que me foi confiado, sem me pedirem nada em troca. Uma vida por uma vida, obrigado meu Deus pela oportubidade, é o que posso e quero dizer. Claro que a fé implica a crença nessa ideia maior, nesse ser superior, que tudo pode dar e retirar, decidir quem chama a si e quem salva, por um comando do destino sobre cada um de nós. Para além disso há ainda o simples agradecimento"terreno" às pessoas, aquelas que me trouxeram empadas, televisão, "phones", computador, companhia, palavras, livros, afectos, comida, hamburgers, roupa, sapatos, carícias, discussões, comversas, simples presença, amizade ou compreensão, tudo isso tem de ser agradecido, pela atitude, pelo retorno  e pela vontade.

Ao agradecer a Deus, Deus retorna em compreensão o nosso agradecimento, e vela para que seja capaz, esteja à altura de tomar conta o bem precioso que me confiou, dado que outro não teve essa benesse para que eu vivesse. Parece simples, parece evidente, mas nos momentos dificeis que irão surgir, será que sou capaz de manter essa coerência?

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Psicologia


psicologia
s. f.
1. Parte da filosofia que trata da alma e das suas manifestações.
2. Estudo dos fenómenospsíquicos.


Era o primeiro a apontar o dedo e a recusar a importância ou a eficácia do acompanhamento psicológico. Enquanto esperava na UCIC, a enfermeira-chefe decidiu pedir para mim um acompanhamento. Foi assim que conheci a Drª N que ainda hoje, aquando das minhas rotinas a S.Marta, procura acompanhar a evolução.

Dizia eu, há algum tempo, que uma consulta com um psicólogo pode ser substituída por uma conversa com amigos, uma visita de família, ou a leitura de um bom livro. Hoje penso que não é bem assim.

De um primeiro contacto desconfiado, acabou criando-se um clima de confiança. As dúvidas acerca do presente e do futuro da minha situação, como lidar com as suas consequências, a antevisão do que poderia acontecer e como gerir os acontecimentos, lidar com eles, mais do que com o médico assistente, estes assuntos foram tratados com a Drª N. Ela sempre soube colocar as boas perguntas, responder às minhas dúvidas, as que tinham resposta, ou não responder àquelas que a não tinham.

As conversas tornaram-se quase diárias, ou no mínimo duas ou três vezes por semana. Aspectos relacionados com o internamento, com a cirurgia para que estava proposto, com as suas possibilidades de sucesso ou insucesso, a família, os amigos, a doença e as suas implicações, o futuro e a forma de o encarar, as intercorrências e o seu impacto. Um apoio excelente, impecável e quase imperceptível, com uma subtileza e uma inteligência que me surpreendeu, A ajuda foi muito especial. Não é de facto "apenas" uma conversa de amigos ou de família. Apercebemos-nos bem da presença de profissionalismo, que simultâneamente aproxima e mantém uma distância adequada, longe para que não nos sintamos "invadidos", mas não tão longe que nos sintamos apenas "observados".

Antes e depois do transplante a lógica foi sempre a "preparação" de um futuro, esclarecido e sem medos, em que a consciência dos limites do problema estava sempre muito claro, sem dar uma imagem mirífica do que se poderia vir a passar. Bem pelo contrário. Tudo me pareceu mais claro, e sempre fiquei muito mais esclarecido, mais consciente, com uma visão mais clara. A própria MA se socorreu dela uma os duas vezes, e a intervenção foi sempre muito profissional, sem interferências abusivas, pisando sempre um terreno firme, sendo que as certezas e as dúvidas eram claras e passadas para o doente, sem deixar lugar a ambiguidades. A ajuda assim obtida foi inestimável, e muito contribuiu para estabilizar o meu estado de espírito e criar uma força suplementar, esclarecida, para enfrentar a adversidade. Mais consciente, melhor informado, mais forte.

Quando entramos no processo de transplante, nada sabemos dele, ou muito pouco. Os médicos, por razões profissionais, feitio ou falta de tempo, pouco esclarecem, ou fazem-no apenas por monosílabos. Foi a psicóloga quem mais me ensinou acerca dos detalhes do processo. Talvez por olhar para ele da mesma forma do doente, de forma simples, com a maior compreensão, acerca das dúvidas do doente e a capacidade de dar aquelas resposta simples que procuramos. Perguntas, como por exemplo, "como é o isolamento?", "quanto tempo lá estarei?", "vale a pena acreditar na eficácia do transplante?", "o que se come depois de ser transplantado?", "que evolução terá o meu corpo?", "terei uma vida normal?", perguntas a que respondia de forma a que o doente percebesse que também que há coisas que já sabe, pela experiência de outros, outras coisas não sabemos mas suspeitamos. Sem a responsabilidade que teria um médico ao dar as mesmas respostas, a psicóloga ajudou-me a compreender melhor o presente e o futuro, a preparar uma vida equilibrada para além do transplante, para além daquela cama, daquelas enfermarias. Foi uma das coisas boas que me aconteceram naquele hospital. Mudou a minha forma de ver a psicologia, as consultas e o "acompanhamento" proporcionado por estes profissionais.

domingo, 18 de novembro de 2012

Suor


suor |ó|
(latim sudor, -oris)
s. m.

1. Humor aquoso que é segregado.secretado pelas glândulas sudoríparas e destila pelos poros. = TRANSPIRAÇÃO
2. Ato de suar; estado de quem sua. = EXSUDAÇÃO, SUDORESE, TRANSPIRAÇÃO
3. Trabalho grande ou intenso. = FADIGA, ESFORÇO, SACRIFÍCIO
4. Fruto desse trabalho.

Nos tempos da espera por vezes o fisiológico revolta-se contra o psicológico, outras vezes acompanham-se. Não sei de que situação se trata, mas a debilidade do meu coração provocava-me um cansaço extremo. As actividades mais simples, cansavam-me. O coração muitas vezes disparava e batia desordenadamente (podia acompanhar pela curva no monitor pelo alarmes que tocavam, para me irritar, claro...) , sem limite, sem controlo e sobretudo sem ritmo certo.Suava então, como se estivesse em plena corrida ou a andar de bicicleta.

Em plena noite sucedeu várias vezes acordar encharcado em suor. O pijama molhado, o suor a correr pelo rosto, pelas costas, em pleno inverno. Só me restava chamar o enfermeiro ou auxiliar, e pedir para fazerem algo. E vinham sempre, mudavam-me a roupa, trocavam o pijama, despiam e vestiam, por vezes mudavam mesmo os lençóis. Uma das vezes, recordo-me bem, já não havia pijamas disponíveis, tive mesmo de vestir um "baby doll" de senhora, apertado nas costas com botões, verde com florinhas cor de rosa, isto para poder dormir em seco. Sempre se arranjou solução.

Após as refeições, sobretudo depois do jantar, e enquanto decorria a digestão, o coração corria desordenado, carregado pelo trabalho que uma simples digestão lhe dava, e o corpo respondia com suor, muito suor. O calor na pele queimava e o suor procurava contrariar esse aumento de temperatura, também nos momentos piores, durante as infeções que ocorreram, a febre surgia, e lá vinha de novo o suor. Aí sempre chamei por ajuda, embora tivesse consciência do trabalho que ía dar áquelas pessoas, que procuravam proporcionar, dentro dos seus limites, conforto, para além de tratamento. Suor, suor e mais suor. Apenas suor.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Morte



morte
(latim mors, mortis)

s. f.
1..Ato de morrer.
2. O fim da vida.
3. Cessação da vida (animal ou vegetal).
4. Destruição.
5. Causa de ruína.
6. Termo, fim.
7. Homicídio, assassínio.
8. Pena capital.
9. Esqueleto nu ou envolto em mortalha, armado de foice, que simboliza a Morte.

 Esteve sempre presente ao longo dos últimos anos, em particular na última fase, a da espera. Poderia considerar duas fases. Até ao internamento, para aguardar transplante, essa relação foi pontual, e sempre foi a imagem da morte que veio ter comigo e não o contrário. Estou-me a referir aos diversos episódios, de arritmias ventriculares, paragens cardíacas entretanto verificadas. Não pensava na morte, nessa altura, apesar da grave insuficiência cardíaca. A morte sim, parece que pensava em mim. Vários episódios deste tipo ocorreram, não em casa, nem no hospital, mas em plena via pública, onde a taxa de sobrecivência é muito baixa ( salvam-se 15% das pessoas e as restantes 85% morrem). De todos os episódios só dois ocorreram antes de me aplicarem o CDI, esses seriam os mais graves, pois em todos os restantes, e muitos foram, o CDI sempre actuou devidamente, gorando os planos que a morte teria para mim.
O primeiro episódio ocorreu no Hospital de Beja, paragem cardíaca revertida pelo enfermeiro Armando, numa fase muito inicial, com intervenção dos cuidados intensivos, o que conduziu à minha primeira cirurgia. Após isso, e durante três anos tive vários episódios desse tipo, mas apenas o primeiro após alta da cirurgia, me encontrou ainda desprotegido, mas com sorte a morte não aproveitou a oportunidade. Foi nessa altura que se decidiu fazer a implantação do CDI, e a partiu daí todos os restantes episódios, mais de uma dezena e meia, ocorreram comigo defendido, e a morte não conseguiu vencer a batalha apesar de tantas oportunidades.

Após muitos episódios desse tipo, e devido ao agravamento muito rápido da insuficiência cardíaca criaram-se as condições para o transplante. Em determinado momento, já não havia garantias que, apesar da actuação do CDI o coração, devido à sua enorme debilidade, tivesse ele mesmo condições de reagir ao estímulo eléctrico do CDI, e repôr as condições "normais".

A partir daqui a imagem da morte passou a conviver comigo. Mais do que uma possibilidade passou a ser um probabilidade real e elevada. Enquanto aguardava por orgão compatível, sabia bem que a morte seria uma visita muito próxima e possível, indesejável, mas possível.Isto colocava na minha cabeça perguntas que noutro contexto seriam absurdas. Cremado ou entregue à terra ? Escrevi cartas à MA, às filhas, à C, dando algumas indicações. Onde ficar ? Como decorreria o funeral e aonde ? Que música tocar ??? O que iria ser de mim do meu corpo, para onde iria ? O que diriam de mim, que imagem deixaria nas pessoas ? O que "queria" para o "eterno repouso" ? Tudo me passava pela cabeça. Lembro-me que optei por ser cremado (é a moda ...) Via a pequena urna num local bem definido.

A noite acentuava a presença da morte, pois no sossego quase ouvia o coração a bater desordenado, alguns batimentos a falhar, como um motor engasgado. Medo não tinha, sabia bem que a morte faz parte da vida, e a morte por colapso é rápida e indolor, tinha-a sentido aquando das paragens cardíacas, não dava por nada, apagava como uma luz que se extingue. A morte acabava por ser o prolongamento normal da própria vida e está tão perto de nós como a vida. É apenas uma mudança de estado.

terça-feira, 6 de novembro de 2012



(latim fides, -ei)
s. f.

1. Adesão absoluta do espírito àquilo que se considera verdadeiro.
2. [Religião]  Sentimento de quem acredita em determinados ideias ou princípios religiosos. = CRENÇA
3. Religião, culto (ex.: fé cristã, fé islâmica).
4. [Religião]  Uma das virtudes teologais.
5. Estado ou atitude de quem acredita ou tem esperança em algo. = CONFIANÇA, ESPERANÇACEPTICISMO, INCREDULIDADE
6. Fidelidade.
7. Prova.
8. Testemunho autêntico dado por oficial de justiça.
 
Ninguém suporta este tipo de espera sem um objectivo, sem a fé de ser capaz do atingir. Os não religiosos, como é (era, não sei ...) o meu caso, não têm o impulso suplementar, nem forças suplementares para além daquilo que é racional. Se a relação com o "não sei o quê" não existe, ou é limitada, como acreditar ? É um tempo de acreditar. Se não acreditar que a espera resulta, como chegar ao resultado esperado ? Daí a dúvida, daí o novo papel de uma fé, uma fé sem religião ( pode ser ?), sim, julgo que sim...

Acreditava que algo se iria passar de positivo após tudo o que já se passou, tudo o que foi vivido e revivido. Surgiu assim uma grande fé no sucesso da cirurgia, na sua realização atempada, uma fé que me fazia não estar ali apenas por mero acaso, mas sim por um imperativo que me ultrapassava, num caminho com um destino, mesmo que amanhã viesse a morrer e nada se passasse conforme o desejado.

Uma fé ajudaria, sem dúvida, mas depende da postura de cada um na vida, não será uma fé cega e sem conteúdo, sem uma verdadeira razão para acreditar. Acreditar porque sim, não ! razões existiam e muitas ! Coisas que ocorreram e que, em cada incidente, me mostrou que não era aquela a minha hora, não seria o momento em que seria chamado. Quando, depois de uma paragem cardíaca, estava rodeado de médicos que estavam a jantar no mesmo restaurante, por mero acaso, e que me salvaram "in extremis". Quando o enfermeiro estava de passagem no corredor e actou numa outra paragem cardíaca. Quando estava junto a mim um enfermeiro a recolher sangue e me reanimou com um murro salvador no peito, parece que há uma mão invisivel que me devolve à realidade, ao meu presente, salvando-me de uma morte quase certa.

Assim desenvolvi uma fé própria, em alguém, em alguma coisa, uma capacidade de salvação que por vezes ultrapassou a lógica do raciocínio que se tornou numa força pela vida, mesmo nos piores momentos, sempre acreditei, sempre foi possível para mim uma forte crença no sucesso, e que mais tarde ou mais cedo a solução estaria na minha mão, como acabou por estar. Nessa fé nunca pedi demais, sempre pedi apenas o dia de amanhã. À noite, ao adormecer pedia (a quem ?) que me fosse concedido apenas mais um dia, e agradecia o dia que ía terminar. No dia seguinte a solução poderia surgir. Acabou por surgir.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Banho


banho
(latim balneum, -i)
s. m.
1. .Ato de banhar ou banhar-se.
2. Líquido em que alguém se banha.
3. Imersão em.
4. Exposição a alguma coisa (ex.: banho de sol).
5. Inserção temporária em determinado meio (ex.: banho de multidão).
6. Líquido para tingir.
7. [Informal]  Derrota pesada ou superioridade clara (ex.: deu um banho ao adversário). = BANHADA
8.  [Antigo]  Presídio de forçados.



Durante mais de três meses o meu conceito daquilo que é um banho teve de mudar. Banho passou a ser uma limpeza de alguidar em alguidar,  uma toalha húmida, por vezes escorrida para que um fio de água pudesse cair na face, provocando uma sensação de frescura, o cabelo muitos dias, ou até semanas, ficou por lavar. Banho na casa de banho, com duche e água corrente, cabelo bem passado por água, apenas alguns dias em que me encontrava melhor, ou depois do transplante, é que pude experimentar essa sensação boa de água corrente. Algo a que damos tão pouco valor, e que nos dá tanto prazer, mas que só valorizamos quando estamos a perder-lhe o acesso.

O banho numa cama é arte, sobretudo para quem tem de dar, e é um pesadelo para quem recebe. Pelo menos no inicio quando nos despimos e sentimos um frio intenso. No final, as voltas todas dadas, tudo resolvido, cama feita, lençóis novos, dá uma sensação de alívio, uma frescura, quando a cama nos abrasa, quando a noite foi inundada por suores, como muitas vezes aconteceu. Neste caso de manhã sentia uma enorme necessidade da água, mesmo apenas uma toalha húmida em contacto com o corpo. Mas vamos à arte.

O banho na cama começa pelo retirar da roupa, soltar os lençóis da sua posição e colocar uma toalha por cima para tapar as "partes íntimas", evitando a exposição, pois em geral era dado por duas pessoas, uma auxiliar e uma enfermeira. Duas bacias, água morna, sabão líquido, duas esponjas. Mais duas toalhas.
O percurso inicia-se na cabeça, na testa, nariz, olhos e resto da face, corre a água e logo se procura secar. Passar bem os olhos, para que se abram e não fiquem as pálpebras coladas pelos restos de uma noite em geral mal dormida. Passa-se ao peito e à barriga, braços e axilas. Segue-se para as pernas e pés que são lavados dedo a dedo e logo secos cuidadosamente. A secagem é imediata para não se apanhar frio. Ainda de barriga para o ar as partes íntimas ficam ao cuidado do paciente. Poucos enfermeiros se aventuraram por aí, a menos que seja verdadeiramente necessário. Nesse ponto cada um trata de si. Pára-se no limite da "humilhação" para o paciente. Depois com apoio, roda-se o corpo como se se estivesse a enrolar um cigarro, para lavar as costas e as nádegas, que ficam a cargo da enfermeira. Entretanto vai-se introduzindo o lençol limpo por baixo do paciente, e faz-se a cama de um dos lados. Terminada esta fase o doente roda no sentido contrário para cima do lençol limpo, e este é puxado por baixo do paciente, enquanto se retira o lençol sujo.

Trabalho limpo e rápido. O lençol é entalado na cama após bem esticado, e apenas se terá agora de colocar o lençol por cima e vestir pijama, para o que há sempre uma ajuda, pois tem de se assegurar a colocação dos fios e tubos retirados, e que os que o não foram não se soltem.

Tudo pronto, uma sensação de grande alívio, de limpeza, de frescura, misturada com uma vontade de meter os pés e as mãos dentro das bacias de água, chapinhar, o que por vezes os enfermeiros permitem.
No período de espera, por vezes estava em condições de ir à casa de banho, acompanhado com um enfermeiro ou auxiliar. Aí sentava-me no apoio metálico, que era uma espécie de "cadeira", onde me sentava, despia, e o acompanhante dava chuveirada dos pés à cabeça. Procurava proteger com sacos de plástico, pensos, tubos, aparelhos que me acompanhavam até ao banho, pois as perfusões não podiam ser interrompidas, e o banho era completo mas rápido. Já todos, homens e mulheres, auxiliares e enfermeiros, conheciam o meu corpo nu, tecendo comentários acerca da minha magreza e estado "escanzelado". Mas reconheço que tentavam ser agradáveis, positivos, e nunca deixavam transparecer que estariam a fazer algo de anormal, pelo que jamais senti algum pudor acerca do acto de tomar banho nu, perante homens e muheres que só  ali conheci. Ía e vinha em cadeira de rodas, pois só o pequeno trajecto entre a cama e a casa de banho, cerca de 50 metros, era demais para o meu coração tão debilitado.

Após o transplante, no isolamento era dado banho na cama, mas já no meu quarto/enfermaria, que tinha uma casa de banho privada, comecei por tomar banho ajudado, pois na primeira semana as forças eram poucas. Passado esse período, comecei a tomar banho sózinho, embora sentado, procurando estratégias que facilitassem o acto. Dificil era vestir sozinho, mas para simplificar já deixava a roupa em posição que facilitasse. Tudo tinha de ser estudado e a regra era não dar o passo apenas com a perna, mas antes, dá-lo com a cabeça, e aplicava-se na perfeição a tudo, para evitar passos em falso e riscos inúteis.

Retornado a casa, um novo desafio se colocava. As primeiras vezes a passar a parede da banheira parecia uma prova de salto em altura. Muito cuidado com tapetes, ou anti-escorregas na banheira, uma pega para me agarrar, um banco de plástico, para apoiar dentro da banheira foram aquisições obrigatórias, Pouco a pouco a confiança no novo espaço, a nova realidade, e lá nos vamos adaptando pois um homem adapta-se a tudo, ultrapassa todas as barreiras, para sair limpo e bem barbeado, e para obter conforto também é preciso correr riscos.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Sangue


sangue
(latim sanguis, -inis)
s. m.
1. Líquido espesso, ordinariamente vermelho, que circula pelas artérias e veias (ex.: sangue arterial, sangue venoso).
2. Princípio de existência, de força, de entusiasmo, de atividade. = VIDA
3. Grupo de indivíduos que têm um ancestral comum (ex.: são do mesmo sangue). = FAMÍLIA
4. Geração.
5. Natureza.
6. Corrimento sanguíneo. periódico das mulheres. = MENSTRUAÇÃO, MÊNSTRUO
 
Um dos meus pavores, a minha rejeição relativa ao sangue era mais forte do que eu. Qualquer recolha para análise, qualquer ferida, ou a simples visualização do sangue, ou da mera hipóteses dele poder correr era para mim motivo de uma reação de pânico. Recordo que uma simples recolha para análise feita com a minha filha Inês ao colo, para a acalmar, teria 4 ou 5 anos, acabou com o quase desmaio do pai, ficando a filha a retirar sangue com a maior das calmas. Dito isto, um dos meus terrores quando começou este périplo por sucessivos internamentos, eram as análises ao sangue, implicando a recolha do sangue, das "picadas" das agulhas. Mal sabia aquilo que estava para vir.

Quando do meu primeiro grande internamento, no qual fiz os by-pass cardíacos, já se constatava a dificuldade em encontrar as minhas veias nos braços, por vezes profundas, outras "bailarinas", como dizem os enfermeiros, para se referirem a veias que "fogem" da agulha, e não se deixam picar. Nessa altura tive alta com os braços todos negros, e cheio de hematomas. Afinal, ao pânico da recolha de sangue, outras situações se seguiram, relativas a cateteres nos braços para perfusãode medicamentos por via intra venosa, alguns dos quais muito agressivos para as paredes das veias, provocando inflamações, hematomas, derrames; tal é o caso da amiodarona, medicamento antiarritmico, que me foi ministrado por essa via, e em poucas horas me provocava inchaços , e sensação dolorosa nos braços.
Mais tarde, quando do internamento para transplante, a situação complicou-se, o internamento foi mais prolongado, foram colocados cateteres periféricos nos braços, cateteres centrais (em artérias), no pescoço, abaixo da omoplata, nas virilhas, pois as veias acabavam por se "cansar" dos ditos, e um cateter dura alguns dias e tem de ser mudado, e encontrado outro local para o aplicar, os cateres centrais podem durar quinze dias, e tudo tem de retornar ao princípio, isto é novo cateter, nova localização, nova complicação, dado que muitas das vezezs, não era possível colocá-lo numa primeira tentativa, implicando ser picado duas, três ou mais vezes. Já não sei se o meu problema era com a visualização do sangue, se com a picada da agulha ou apenas com o imaginar de tal situação.

Seja como for, mais um obstáculo a ultrapassar; aí se conclui que nos habituamos a tudo o que necessitamos. A nossa capacidade de adaptação, tendo limites, evolui, e acaba por nos dar a capacidade de suportar aquilo que parecia insuportável. Assim comigo e com a minha turbulenta relação com o sangue e as agulhas.

À medida que a espera por orgão compatível se prolongava, os meus braços iam ficando cobertos de nódoas negras, cada vez mais a recolha de sangue era penosa, uma das vezes fui picado sete vezes seguidas até se conseguir retirar sangue para uma hemocultura, que implicava várias recolhas. As sete vezes apenas para uma das recolhas.

Os cateteres, que inicialmente eram colocados nas mãos ou nos braços, passaram nalguns casos a cateteres centrais, colocados nas artérias, para continuar a assegurar a medicação intravenosa, e para meu repouso, pois alguma da recolha de sangue era feita no cateter central, "poupando-me" a mais umas picadelas. Cada vez que eram colocados, era como se de uma pequena cirurgia se tratasse, feito por um médico e não por enfermeiros, era dada uma pequena anestesia local, para a sua colocação, pois havia que perfurar a artéria, que tendo sangue sob pressão, tem risco de hemorragia, coisa que não se passa nas veias.

Após o transplante as recolhas de sangue continuaram, quase dia sim dia não, pois as doses de alguns medicamentos implicavam conhecer os seus valores. Algumas das vezes não sendo já possível encontar região dos braços onde picar, foi necessário chamar uma anestesista que fazia a recolha de uma artéria, no pescoço, nas virilhas, no fundo nos locais onde se aplicavam os cateteres centrais.

Quando tive alta , depois do transplante, os braços estavam cobertos de nódoas negras, de hematomas, as mãos inchadas, dormentes, pois à falta de outras soluções, as mãos também serviram para colocar cateteres ou fazer recolhas. Hoje, passados muitos meses, as análises são mensais e o corpo regenerou, embora as mãos continuam com dormencia e dores.

Agora os braços votaram quase ao normal, e o débito nas veias aumentou, pois era o falta de débito que dificultava as recolhas, o "novo" coração tem agora uma capacidade de bombagem de sangue muito melhorada. Mas o meu pânico com o sangue permanece, agora mais controlado. Ainda olho para o outro lado quando a agulha penetra na veia, e procuro na extensão do mar, respirar calmamente, e apenas pensar nesse mar a perder de vista, imagem que me tranquiliza e que permite que tudo possa ser feito com calma.

A adaptação faz-se, mas quando passa a necessidade, voltamos aos nossos medos, aos nossos pânicos, como se nada se tivesse passado. Regeneramos a postura e a atitude face às novas situações. A nossa mente é mais forte, em qualquer dos sentidos, e assim nos mantêmos. O sangue continua a ser um fantasma que me assusta, apesar dele ser a essência, a corrente que nos traz a vida.