quinta-feira, 9 de junho de 2016

Irascível


Não sei se outros transplantados se queixam do mesmo, mas no meu caso noto uma alteração grande no meu modo de estar, na minha reação, na atitude face a adversidades, dificuldades ou situações limite. Digamos que o meu "feitio" mudou, não necessáriamente no bom sentido. Penso que nada tem a ver com a operação em si mas sim com o processo, e toda a "tramitação", aquilo que se passou, aqueles momentos em que olhar no espelho era para mim uma experiência traumatizante. Verdade que parecia lógico que o ter passado pelo que passei poderia ter introduzido um sentimento de relativização face a situações que anteriormente pareciam inultrapassaveis  Na realidade essa desvalorização das dificuldades surge, vivo melhor com menos, mas o feitio esse tornou-se mais irascível, pouca coisa me faz "saltar a tampa", e a minha reação é agora imprevisível, e muitas vezes indesejável para mim mesmo. Tenho menos autocontrolo, e por vezes perco as "estribeiras". Claro temos também os diabetes que não ajudam nada. Tenho observado outros transplantados cardíacos e de facto encontro em todos esses sintomas. A impaciência, a ansiedade, a reação intempestiva fazem agora mais que nunca parte do meu feitio.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Desaparecer


Não sei se o mesmo sucede com outros transplantados de outros orgãos, penso que sim, mas por aqui de vez em quando os poucos transplantados de coração (cerca de 50 por ano, dos quais uma vintena em S.Marta ) desaparecem, isto é entregam a alma ao criador. Alguns já vi desaparecer, quase sempre associados a comportamentos nem sempre de acordo com os parâmetros do "livro cor de rosa", a brochura que nos é  oferecida após o transplante. Assim temos por aí comportamentos de risco que não são abandonados, medicamentos que só são tomados porque a "mulher" lhes toma conta, ou pouco cuidado na ida a locais que recomendam proteção com máscara. Mas também há os outros, poucos, que nunca chegam verdadeiramente a "levantar cabeça". Tenho um caso de morte recente em que tudo aconteceu. Durante os três ou quatro anos de transplante de coração a sua casa era mais S.Marta. Infeções bacterianas permanentes, edemas, perda de andar, pois as pernas não aguentavam o peso do corpo, depois glaucoma, cegueira, e por fim problemas digestivos que acabaram por conduzir a morte prematura. Assim perdi um amigo, amizades  de hospital claro. Mas esta é a exceção. A regra são os maus exemplos, Não são tudo rosas,. mas há muitos espinhos que podemos evitar.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Mínimos




Cinco anos e mais seis meses na condição de transplantado cardíaco o trauma sobrevive e a vida, embora possa ter retomado o seu ciclo, fê-lo numa lógica de "serviços mínimos". Claro mais vale uma vida em serviços mínimos do que uma vida "encerrada para balanço". Acerca disso nenhuma dúvida. Tenho procurado manter actividade, novos interesses tomaram uma dimensão que não tinham, é o caso da pintura, que embora já merecesse o meu interesse, agora dedico-lhe muito mais tempo, seja a pintar seja a animar grupos que pintam, e neste momento já são três com cerca de vinte pessoas e que seguem as minhas sessões que faço de forma benévola, pois a minha condição de aposentado por incapacidade não me permite que isso me dê qualquer rendimento, que felizmente não necessito. A minha condição de "alentejano" adoptado, que vive em permanência no BA também não me permite outras alternativas. Mas sinto-me bem assim. Poderia estar condenado à irrelevância dos meus sessenta e três anos doentes, mas penso que a dedicação e o esforço fazem de mim um ser com relevo, alguém. Se me perguntam se é uma vida plena, não, não é. Imponho a mim mesmo muitos limites, ou melhor são me impostos pela minha condição, pelo estado a que cheguei quando se fez o transplante, pelas suas consequências, pela medicação maciça e agressiva a que estou sujeito, pela ditas intercorrências, uma coluna desgraçada por meses de internamento, uma vista atacada por edemas que me afectam a visão, os diabetes, a condição de hipo-coagulado, mas um coração "usado" mas em bom estado. O meu dador foi generoso, ou generosa, pois a minha médica de família jura sobre a Bíblia que é de mulher. Esta a cartilha dos meus serviços mínimos. Mas ainda assim serviços feitos.