sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Sangue


sangue
(latim sanguis, -inis)
s. m.
1. Líquido espesso, ordinariamente vermelho, que circula pelas artérias e veias (ex.: sangue arterial, sangue venoso).
2. Princípio de existência, de força, de entusiasmo, de atividade. = VIDA
3. Grupo de indivíduos que têm um ancestral comum (ex.: são do mesmo sangue). = FAMÍLIA
4. Geração.
5. Natureza.
6. Corrimento sanguíneo. periódico das mulheres. = MENSTRUAÇÃO, MÊNSTRUO
 
Um dos meus pavores, a minha rejeição relativa ao sangue era mais forte do que eu. Qualquer recolha para análise, qualquer ferida, ou a simples visualização do sangue, ou da mera hipóteses dele poder correr era para mim motivo de uma reação de pânico. Recordo que uma simples recolha para análise feita com a minha filha Inês ao colo, para a acalmar, teria 4 ou 5 anos, acabou com o quase desmaio do pai, ficando a filha a retirar sangue com a maior das calmas. Dito isto, um dos meus terrores quando começou este périplo por sucessivos internamentos, eram as análises ao sangue, implicando a recolha do sangue, das "picadas" das agulhas. Mal sabia aquilo que estava para vir.

Quando do meu primeiro grande internamento, no qual fiz os by-pass cardíacos, já se constatava a dificuldade em encontrar as minhas veias nos braços, por vezes profundas, outras "bailarinas", como dizem os enfermeiros, para se referirem a veias que "fogem" da agulha, e não se deixam picar. Nessa altura tive alta com os braços todos negros, e cheio de hematomas. Afinal, ao pânico da recolha de sangue, outras situações se seguiram, relativas a cateteres nos braços para perfusãode medicamentos por via intra venosa, alguns dos quais muito agressivos para as paredes das veias, provocando inflamações, hematomas, derrames; tal é o caso da amiodarona, medicamento antiarritmico, que me foi ministrado por essa via, e em poucas horas me provocava inchaços , e sensação dolorosa nos braços.
Mais tarde, quando do internamento para transplante, a situação complicou-se, o internamento foi mais prolongado, foram colocados cateteres periféricos nos braços, cateteres centrais (em artérias), no pescoço, abaixo da omoplata, nas virilhas, pois as veias acabavam por se "cansar" dos ditos, e um cateter dura alguns dias e tem de ser mudado, e encontrado outro local para o aplicar, os cateres centrais podem durar quinze dias, e tudo tem de retornar ao princípio, isto é novo cateter, nova localização, nova complicação, dado que muitas das vezezs, não era possível colocá-lo numa primeira tentativa, implicando ser picado duas, três ou mais vezes. Já não sei se o meu problema era com a visualização do sangue, se com a picada da agulha ou apenas com o imaginar de tal situação.

Seja como for, mais um obstáculo a ultrapassar; aí se conclui que nos habituamos a tudo o que necessitamos. A nossa capacidade de adaptação, tendo limites, evolui, e acaba por nos dar a capacidade de suportar aquilo que parecia insuportável. Assim comigo e com a minha turbulenta relação com o sangue e as agulhas.

À medida que a espera por orgão compatível se prolongava, os meus braços iam ficando cobertos de nódoas negras, cada vez mais a recolha de sangue era penosa, uma das vezes fui picado sete vezes seguidas até se conseguir retirar sangue para uma hemocultura, que implicava várias recolhas. As sete vezes apenas para uma das recolhas.

Os cateteres, que inicialmente eram colocados nas mãos ou nos braços, passaram nalguns casos a cateteres centrais, colocados nas artérias, para continuar a assegurar a medicação intravenosa, e para meu repouso, pois alguma da recolha de sangue era feita no cateter central, "poupando-me" a mais umas picadelas. Cada vez que eram colocados, era como se de uma pequena cirurgia se tratasse, feito por um médico e não por enfermeiros, era dada uma pequena anestesia local, para a sua colocação, pois havia que perfurar a artéria, que tendo sangue sob pressão, tem risco de hemorragia, coisa que não se passa nas veias.

Após o transplante as recolhas de sangue continuaram, quase dia sim dia não, pois as doses de alguns medicamentos implicavam conhecer os seus valores. Algumas das vezes não sendo já possível encontar região dos braços onde picar, foi necessário chamar uma anestesista que fazia a recolha de uma artéria, no pescoço, nas virilhas, no fundo nos locais onde se aplicavam os cateteres centrais.

Quando tive alta , depois do transplante, os braços estavam cobertos de nódoas negras, de hematomas, as mãos inchadas, dormentes, pois à falta de outras soluções, as mãos também serviram para colocar cateteres ou fazer recolhas. Hoje, passados muitos meses, as análises são mensais e o corpo regenerou, embora as mãos continuam com dormencia e dores.

Agora os braços votaram quase ao normal, e o débito nas veias aumentou, pois era o falta de débito que dificultava as recolhas, o "novo" coração tem agora uma capacidade de bombagem de sangue muito melhorada. Mas o meu pânico com o sangue permanece, agora mais controlado. Ainda olho para o outro lado quando a agulha penetra na veia, e procuro na extensão do mar, respirar calmamente, e apenas pensar nesse mar a perder de vista, imagem que me tranquiliza e que permite que tudo possa ser feito com calma.

A adaptação faz-se, mas quando passa a necessidade, voltamos aos nossos medos, aos nossos pânicos, como se nada se tivesse passado. Regeneramos a postura e a atitude face às novas situações. A nossa mente é mais forte, em qualquer dos sentidos, e assim nos mantêmos. O sangue continua a ser um fantasma que me assusta, apesar dele ser a essência, a corrente que nos traz a vida.

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