segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Voltar


voltar - Conjugar
v. tr.

1. Dar volta a, volver, virar; pôr do avesso.
2. Mostrar ou apresentar pelo lado ou face oposta.
3. Dar em troco.
v. intr.
4. Regressar.
5. Tornar a vir.
6. Reaparecer, tornar.
7. Replicar, responder; dar volta ou voltas; tornar a fazer.
8. Mudar de rumo.
9. Fermentar segunda vez; toldar-se, turvar-se.
10. Retroceder.
11. Reincidir.
v. pron.
12. Virar-se, apresentar a cara a quem vem ao lado ou atrás.
13. Dirigir-se, recorrer.
14. Revolver-se, virar-se; dar voltas (na cama); investir, acometer.

Tinha agora voltado ao inicio de um percurso que me conduziria, não se sabe onde. Tinha sido retirada a ventilação, e aos poucos iriam sendo retirados tubos, sondas, algália. Muita coisa mudava. Desde logo a medicação. Eu deixara de ser um doente cardíaco no sentido habitual, terminava a medicação para a tensão, para as arritmias, para estimular o coração, e no seu lugar apareciam agora outros "pesos pesados", como a ciclosporina, um imunosupressor, que tomava dosesndo com uma pipeta uns miligramas para dentro de um copo terapeutico, onde era misturado com sumo compal, para disfarçar o seu sabor insuportável. Tomava ainda um segundo imunosupressor, o micofenelato. Seguiam-se corticóides em dose de cavalo, analgésicos, insulina, pois a partir de agora ía fazer parte do grupo dos diabéticos insulinodependentes, anti virais, entre outros.

A minha entrada em isolamento deu-se a 27 de Dezembro e lá permaneci cerca de dez dias, afinal coisa pouca, pois sempre me preparara para um mês o mínimo. De facto um companhiro, no quarto ao lado, já lá se encontraca há três meses, e ainda por lá ficou muitos mais, mas eram casos em que as complicações se sucedem, sem ser possível dominá-las de forma eficaz.

Agora respirava normalmente, sem apoio, o que era muito bom, pois a ventilação forçada atrapalha,  causa um grande mal estar, além de impedir falar, beber e comer normalmente. E a evolução foi-se dando. Primeira vitória, virar-me na cama, sózinho. Depois de ajeitar cuidadosamente os fios e os tubos, para posição mais adequada, dar um impulso, suportar a dor, e voltar-me. Isto aconteceu ao fim de dois dias. A primeira saída da cama, para o cadeirão, ainda no isolamento. Ao fim de dois ou três dias, e o tempo no cadeirão foi aumentando gradualmente, movimentos sempre com o apoio do enfermeiro que tomava conta de mim 24 sobre 24. Pôr-me de pé, agarrado ao enfermeiro, à cama e à cadeira, dar alguns passos. Desde logo se notava a melhoria que o novo coração trazia. Nunca coisa simples, o falar. Antes quase não conseguia falar, ao longo do dia ía perdendo a voz, à noite nem falava ao telefone, pois o esforço já não era tolerável, agora a minha voz voltava pouco a pouco.

As visitas decorriam nos mesmos horários da UCIC. A diferença estava "apenas"na necessidade destas se equiparem a preceito, com máscara, toca, túnica protectora, e quer o paciente quer a visita lavarem as mãos com desinfectante para se poderem tocar sem risco de contaminação. Os dias passavam, por vezes os enfermeiros falavam comigo e davam umm retorno de informação, que permitia ir-me apercebendo do evoluir, e quão perto ou longe me encontrava da data em que abandonaria aquele local, que mais parecia um aquário, onde um único peixe nadava, isolado mas seguro. Do lado de fora passava um corredor, onde reconhecia pessoal da UCIC, onde tinha estado tantos meses, que vinha dizer-me adeus, ver se tinha mesmo sobrevivido, mas em geral não entravam. Sabiam que quanto menos visitas melhor. Numa das vezes um grupo de enfermeiros, a Célia entre outros, vieram e encostaram um papel junto da vidraça onde estava escrito "Boa Sorte Melhoras !!!". O pessoal era inexcedível e torcia por mim. As coisas pareciam agora estar a virar, e voltaria decerto a viver.

Como sempre Dr RS, parco em palavras, não dava indicações de datas. Apenas ao fim de sete ou oito dias começou a dizer que as coisas estavam bem, prudente, e que talvez saísse dali em breve. Fiquei admirado com a rapidez do processo.

Um dos pontos que dificultava era a comida, empapada, sem sabor, e sobreaquecida, mas aos poucos habituei-me. Tinha mesmo de comer, como se de um medicamento se tratasse, pois tinha emagrecido muito, perdido massa muscular o que iria perturbar a recuperação física, nomeadamente o andar, que era ainda impossível. Quanto à saída esta dependeria como sempre de não ter "intercorrências" e de me autonomizar daquelas máquinas a que estava ligado. No dia em que delas me libertasse, a saída estava próxima, pois o choque com o exterior seria importante para testar a minha resistência às agressões dos agentes patogénicos, que espreitavam por todo o lado. Ali dentro eram mantidos "na ordem". Mas o desligar das máquinas era gradual, todos os dias tiravam uma coisa, uma sonda, um tubo, um cateter, uma algália, um fio, um saco, enfim, ía ficando liberto das peias.

Tudo ficou claro no dia em que o Dr RS me disse "amanhã sai para a enfermaria". O Dr RS era assim, só falava com base em certezas. Não corria risco de alimentar falsas expectativas, que para estes doentes era o pior, pois havia tantas possibilidades de tudo correr mal inesperadamente.

Nesse dia fui tomar banho, o primeiro na casa de banho, no exterior, desde o transplante, tinham passado dez dias. Até aqui tinham sido "banhos de gato". Foi um banho sentado num banco, e com ida e vinda em cadeira de rodas, não valia a pena desperdiçar energia. Tudo pronto, arrumadas as coisas, e fui transferido para a enfermaria, deixando de vez aquele local onde tinha passado os primeiros dias, pós transplante, onde passara a passagem de ano de 2010 para 2011, ouvindo os "foguetes" no exterior e o simples "reveillon" feito pelos enfermeiros, médicos e auxiliares, no corredor, onde não pude participar, claro.

O isolamento tinha sido muito mais "benigno" e limitado no tempo do que jamais tinha imaginado, e a partir de agora, começava a viver uma vida mais próxima da realidade, menos protegido, não estaria mais no aquário, como um animal em vias de extinção, protegido de um mundo agressivo, mas começaria o caminho da desejada autonomia. Ao final da manhã do dia 5 de Janeiro 2011, levaram-me para a "enfermaria", que afinal era um quarto !!!

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